12.8.07

O cinzeiro ficou como sempre, inerte, aguardando o último olhar da noite.

Ele sabia que uma vez mais presenciaria uma baforada leve, lenta e profunda, daquelas que botam até o ar de ontem para fora. Lembrava que, depois, seria aconchegado num quente abraço pelas cinzas que lhe cobrissem, que o guiariam rumo à escuridão, até quando não mais sentisse nada e adormecesse, à espera da próxima luz da manhã.

Era assim que se acostumara a receber seu boa-noite de todos os dias, por 37 anos, sempre em algum horário às tantas da madrugada. Houve muitas casas em sua história, muitos conjuntos de móveis, várias combinações de estantes e livros, mas ele nunca deixou de estar na mesma mesa de mogno, asseada e minuciosamente organizada, com uma lâmpada artificial a lhe dar as costas e papéis a lhe observar de lado.

O cigarro que se apoiava fragilmente em seu corpo queimava as últimas brasas, deixando cair docemente seu passado na superfície de vidro verde. Assim era sua existência e assim a amava - sua função era acalentar a vida em seus sôfregos suspiros de morte. Alimentava-se do calor do fogo morto e a fumaça era pra si um sinal de esperança.

Esperava, como em cada ocasião anterior, o último trago do dia, o último suspiro, a última baforada, o leve tremular da mão a extinguir a chama, e o olhar - aquele triste e enigmático olhar de um velho companheiro, a única coisa que lhe alentava crença em um amanhã.

Esperou, até o último filete de fumo se esvair e o cigarro tombar.
Até aquele olhar parecer distante, turvo, mítico.
E continuou a esperar, inerte, mesmo não havendo mais em seu peito brasa.
Só cinzas, frio, medo.


29.5.07

Nem éter, nem cocaína; nem tristeza, nem alegria.

Ainda estou à espera da minha jazz-band.


31.3.07

Às vezes, é só o que quero gritar pro mundo.

"Eu vou ser advogado mas tenho coração"

Obrigado, Nara. ;]


23.3.07

Tinha olhos grandes, muito grandes.
Olhos de morte, até onde eu conseguia desvendá-los. Mudos, mas incansavelmente comunicantes.
Pupilas que em vida não mais conheci, que me refletiam, cru, deformado, como devia ser.
Eu sentia dedos que não havia me tocarem, mãos me puxarem, um grito, um suspiro, um pedido de socorro - não!, de compreensão.

- Vai, garoto, e segue teu caminho! Corre pelas terras que eu nunca ousei, vê as estrelas que eu nunca entendi, ama os teus como eu nunca pude.
Porque a vida é um matadouro para todos nós e estar do outro lado da cerca é só uma forma de tu ganhares tempo.
Não te impressiones com o que é certo e não tem remédio. Há fardos maiores, dores piores, lâminas mais afiadas e tal tu descobrirás
algum dia
quando, talvez,
voltares a lembrar de mim.


20.2.07

A primeira luz do dia entrava pelo quarto com a preguiça de uma quarta-feira de cinzas, se esgueirando pela veneziana, desvelando as tortas silhuetas dos objetos que compunham um quarto que não era meu. Desconhecia-o não pela forma ou conteúdo, mas pelo agradável cheiro que impregnava o ar e parecia ser o único e autêntico morador, usucapiente de longa data.

Sentia-me nu e queria checar a realidade de minhas condições, mas a conclusão máxima a que poderia chegar era a que meus músculos haviam decretado recesso, acompanhando o resto da cidade. Meu mundo às sete e trinta e oito da manhã era o que meu pescoço alcançava em um giro de cabeceira a cabeceira. Preponderavam nele o teto e todos as dúvidas que me faziam tentar arrancar do fundo da embriaguez as lembranças das horas passadas.

Na verdade, mal sabia eu se de fato havia alguma embriaguez, alguma febre báquica que me tivesse acometido. Por mais que o corpo tremesse, a cama estivesse quente e o amargo gosto do desconhecido permanecesse na boca, o Carnaval ainda me era solidão. A triste alegria de cada folião me doía como rancor no peito e meus prazeres se tornavam mentiras de ocasião.

Pelo cansaço ou pelo desgosto, meus olhos lentamente foram se perdendo na semi-escuridão, percorrendo móveis de um lugar que estranhamente se tornava mais e mais familiar, e ao parar no exato retrato de meu pai, pesaram como a inexatidão de meus dias.


15.2.07


Meu mais novo herói pessoal.


24.1.07

Uma série, talvez. Um nome lamentável, certamente.
Contos de Ônibus, I.
.
A freada brusca contorceu a todos, sem diferenciações. Cada face, preta, parda ou branca, viu pender uma gotinha a mais de suor naquela sexta-feira infernal e meia dúzia de dedos estalaram forte ao buscarem apoio no objeto imóvel mais próximo. A massa de corpos, habituada ao balé pendular, acabou por se desagregar caoticamente em múltiplas direções.

Até então indiferente ao que ocorria ao seu redor, o cobrador viu o livro que lia cair aos pés de uma velha gorda de sandálias e se sentiu obrigado a buscar a causa de tanto desassossego: esticou um pouco o pescoço e pôde enxergar, através da janela do ônibus, um sedã freando e se aproximando erraticamente. Sabia que acabaria por não ser nada sério - as pessoas não estavam gritando de coração.

Suspirou. Não era alívio, talvez fosse uma certa decepção. A morte o inquietava não como fatalidade, mas como compromisso. Começara a sonhar, não faz muito tempo, que morreria esmagado pelas ferragens que o cercavam em suas viagens diário pelas ruas da cidade. Em especial, perseguia-o a imagem da barra de apoio lateral à sua cadeira transfixando seu abdômen. Nunca sentia a dor correspondente, nem qualquer tipo de peso no coração ou frio na barriga - era mais como um leve e inesperado soluço, ao final do qual costumava acordar para não voltar a dormir, restando-lhe fixar o teto em silêncio.

Ainda que incômoda, a repetição incessante do sonho não lhe causava medo - entendia que havia se tornado algo inevitável e que deveria haver algum sentido nisso, um sinal, um prenúncio. Não que fosse religioso, chegou até a acreditar em Deus umas duas vezes, mas em geral ia à igreja apenas para acompanhar sua mulher. Na verdade, era ela quem ele mais temia, sua reação ao contar-lhe o que vinha acontecendo, seu escárnio, sua reza, suas recomendações de ir ver o padre, a estampa arroxeada de seu vestido de missa.

Riu-se de si, como bem o faria ela, com todos os dentes menos um. Como poderia fantasiar tanto apenas por não conseguir dormir direito? Oras, se os colegas da empresa ficassem sabendo disso...

A arrancada súbita do ônibus precipitou a decisão da velha senhora de passar pela roleta e, com um leve toque no braço do cobrador, ela muito prestimosamente entregou-lhe a passagem e o livro caído. Ele olhou para fora e viu que o sedã já se recompunha no cruzamento, ao som de variadas buzinas, e que o trânsito aos poucos voltava a fluir. Pegou o livro e achou por bem guardá-lo para uma outra hora, esse livro de curioso nome Lolita.