24.1.07

Uma série, talvez. Um nome lamentável, certamente.
Contos de Ônibus, I.
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A freada brusca contorceu a todos, sem diferenciações. Cada face, preta, parda ou branca, viu pender uma gotinha a mais de suor naquela sexta-feira infernal e meia dúzia de dedos estalaram forte ao buscarem apoio no objeto imóvel mais próximo. A massa de corpos, habituada ao balé pendular, acabou por se desagregar caoticamente em múltiplas direções.

Até então indiferente ao que ocorria ao seu redor, o cobrador viu o livro que lia cair aos pés de uma velha gorda de sandálias e se sentiu obrigado a buscar a causa de tanto desassossego: esticou um pouco o pescoço e pôde enxergar, através da janela do ônibus, um sedã freando e se aproximando erraticamente. Sabia que acabaria por não ser nada sério - as pessoas não estavam gritando de coração.

Suspirou. Não era alívio, talvez fosse uma certa decepção. A morte o inquietava não como fatalidade, mas como compromisso. Começara a sonhar, não faz muito tempo, que morreria esmagado pelas ferragens que o cercavam em suas viagens diário pelas ruas da cidade. Em especial, perseguia-o a imagem da barra de apoio lateral à sua cadeira transfixando seu abdômen. Nunca sentia a dor correspondente, nem qualquer tipo de peso no coração ou frio na barriga - era mais como um leve e inesperado soluço, ao final do qual costumava acordar para não voltar a dormir, restando-lhe fixar o teto em silêncio.

Ainda que incômoda, a repetição incessante do sonho não lhe causava medo - entendia que havia se tornado algo inevitável e que deveria haver algum sentido nisso, um sinal, um prenúncio. Não que fosse religioso, chegou até a acreditar em Deus umas duas vezes, mas em geral ia à igreja apenas para acompanhar sua mulher. Na verdade, era ela quem ele mais temia, sua reação ao contar-lhe o que vinha acontecendo, seu escárnio, sua reza, suas recomendações de ir ver o padre, a estampa arroxeada de seu vestido de missa.

Riu-se de si, como bem o faria ela, com todos os dentes menos um. Como poderia fantasiar tanto apenas por não conseguir dormir direito? Oras, se os colegas da empresa ficassem sabendo disso...

A arrancada súbita do ônibus precipitou a decisão da velha senhora de passar pela roleta e, com um leve toque no braço do cobrador, ela muito prestimosamente entregou-lhe a passagem e o livro caído. Ele olhou para fora e viu que o sedã já se recompunha no cruzamento, ao som de variadas buzinas, e que o trânsito aos poucos voltava a fluir. Pegou o livro e achou por bem guardá-lo para uma outra hora, esse livro de curioso nome Lolita.